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2004/10/16


Madrugada...

6.00 horas da manhã... encontro a rua na minha saída. Manhã gelada, ainda escura, sem sinais do despontar do sol. Ruas quase sem gente, apenas se encontram os madrugadores obrigatórios. Dois ou três carros circulam, alguns autocarros passam, levando os trabalhadores para as fábricas. Na paragem, algumas pessoas aguardam o primeiro autocarro. Entre eles, um garoto cheio de energia corre e fala alto, deixando todos meio loucos. Uma lâmpada pisca intermitente na rua, nos seus raios laranja de mercúrio. Nota-se o asfalto molhado e as pedras da calçada estão escorregadias. Choveu esta noite no meu subúrbio.
Ainda dorme tudo. Aqui e ali vêm-se iluminar algumas, raras, janelas. Iniciam-se nas casas a preparação para mais um dia de trabalho, de rotina... Na porta do supermercado que abrirá ás 9.00, aguardam já aquelas que o irão limpar. Vêem-se as carrinhas de distribuição de jornais, que nos trarão as novidades e as desgraças do dia. A meio da avenida um homem de muletas aguarda a sua boleia. Ao passar pela padaria sente-se o cheiro do pão fresco e ainda quente que emana ainda dos sacos de papel pendurados na porta. Mais trabalhadores aguardam as suas camionetas, encostados ás portas das lojas e ás montras ainda iluminadas, conversando ensonados. É assim no meu subúrbio.
No jardim, ainda funcionam os aspersores que mantêm a relva minimamente verde. Ao longe, vêm-se os comboios passar, já com alguns passageiros, qual rápidas serpentes luminosas no seu percurso ainda nocturno. Uma senhora passeia o cão, deixando-o meio solto, enquanto vai lendo o anúncio das obras no café da esquina. Passa uma patrulha da polícia, luzes também apagadas, sinais de cansaço nos rostos dos ocupantes. Cruzo-me com um homem que me recorda um qualquer “boneco” daqueles programas de humor que se vêm na televisão, grandes óculos escuros, bigode farfalhudo, cabelo comprido, com patilhas e penteadinho com brilhantina, andar gingão. Um sorriso interior e segue-se caminho, que o tempo não pára. É assim no meu subúrbio.
Tudo está ainda sereno, num momento de paz antes do grande despertar colectivo e de migração de almas rumo ao tudo / nada quotidiano. Na estação repete-se o vai-vem quase eterno, levando e trazendo os seus passageiros, ainda meio vazios, qual comboios fantasma, ocupados por zombies. Na gare, organizam-se filas para aceder ás portas do comboio, manifestações espontâneas de respeito colectivo. Aguarda-se... e quando chega, rapidamente se entra, procurando o desejado lugar sentado que, nalguns casos, irá permitir prolongar a sonolência e a recordação do sono ainda tão próximo, noutros, irá permitir continuar a leitura do jornal e do livro do momento, outros dedicam-se a um jogo de cartas, uma batota animada e divertida, outros dedicam-se à conversa, coscuvilhices, brejeirices, que circulam em redor da família, dos vizinhos, do programa de televisão na berra, da telenovela, do trabalho. Formas de escape e de sobrevivência, de manutenção da sanidade mental, de pequenas felicidades e vivências. Ouve-se ao fundo a sirene de uma ambulância e, pela janela, observam-se os raios azuis dos intermitentes de emergência. Acidente certo na estrada, mais um. Ouve-se o sinal de partida, fecham-se as portas, movimenta-se o comboio, um sorriso, um suspiro e um último olhar pela janela para a cidade quase parada, antes de se voltar à modorra e ao quase sonho, que permite alhear um pouco da rotina cristalizadora. É assim no meu subúrbio...

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